Repórter: Gabriel Henrique Teixeira
“Só quem vive isso de estar dentro de um estádio de futebol, sabe a sensação que é”, “ninguém sabe explicar esse amor”, “é uma paixão de família”. Essas frases foram ditas por torcedores que são apaixonados pelos seus clubes e já fizeram loucuras para estar perto da sua equipe de coração. Ao serem perguntados sobre o sentimento que têm pelo seu time, todos tiveram reações parecidas: um pouco de silêncio, refletiram sobre a pergunta, até encontrarem palavras que tentassem resumir esse amor.
Você, sendo fã ou não de futebol, deve se lembrar de algumas provas de amor que torcidas do Brasil e do mundo fizeram pelos seus clubes de coração. Seja a do Corinthians, que levou mais de 30 mil “loucos” para o outro lado do mundo para acompanhar a equipe no Mundial de Clubes FIFA de 2012, seja a torcida do Flamengo que sempre mantém a melhor média de público nos campeonatos em que disputa. Também podemos citar o exemplo da torcida do São Paulo, que em 2023, tem uma média de presença de público de 43.658 em 23 jogos disputados no Morumbi. Essa marca é a maior, de longe, da história do clube, que era de 32.787, em 2022.
“Eu acho que a paixão de uma pessoa comum por futebol surge quando menos se espera. Você pode ver que tem sempre uma ligação afetiva. É sempre uma pessoa que você gostava muito, seja um parente, um vizinho, ou um amigo que te pegue pela mão e te mostre no momento especial da sua vida e você vai relacionar para sempre o futebol com aqueles bons momentos. Pode ser hereditário, como é o meu caso, meu pai gostava de futebol e eu tenho essa ligação com meu pai”, opina o professor universitário de comunicação, jornalista e comentarista esportivo dos canais ESPN (e corinthiano), Celso Unzelte.
O professor também aproveita para admitir que a maior prova de amor de uma torcida para o seu time de coração que presenciou no futebol, “foi ver milhares de pessoas indo para o Japão ver a final do Corinthians no mundial. Eu me lembro que a aeromoça da escala da companhia aérea americana não tinha essa intimidade com o Mundial de Clubes e não entendia o que a gente estava indo fazer.
“Ela nos perguntou se éramos atletas, se estávamos indo competir, porque nos viu todos uniformizados. Todos deram risada e explicamos para ela que estávamos indo assistir dois jogos da competição. Ela se espantou com a resposta e nos questionou novamente: Vocês estão cruzando o mundo por causa de dois jogos? E na hora eu me lembro que perguntei para os corinthianos se eles cruzariam o mundo dessa forma caso a filha deles estivesse se casando no Japão ou por conta de um velório de um parente no país asiático, e rapidamente disseram que não. E claro, além do Corinthians, outros times também fizeram isso, como o São Paulo, Santos, Internacional, entre outros”, completa o também pesquisador e escritor.
O professor do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-membro do Conselho Consultivo do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, (PUC-SP), José Paulo Florenzano, explica que a motivação de um “fanático” é uma questão complexa e crucial para a compreensão das práticas torcedoras. “As pessoas buscam nas torcidas satisfazer um sentimento que pertença à comunidade que a equipe representa, seja uma classe social (time do povo), seja um grupo étnico/racial (a colônia italiana ou a população afrodescendente). Pertencimento à comunidade, afirmação da identidade coletiva, vivência do estar-junto na arquibancada, são os aspectos centrais na experiência torcedora”, pontua.
Sentimento, família e prova de amor
O flamenguista George Kalil, natural do Rio de Janeiro, mas que hoje mora em Mogi Mirim, localizada a 60 km da cidade de Campinas, interior do estado de São Paulo, nos contou que sua paixão pelo rubro negro carioca veio através de sua família, principalmente pelo seu pai, que o levava nos estádios para acompanhar as partidas de seu time de coração
“Meu pai sempre frequentou o estádio, ainda mais quando a gente morava no Rio de Janeiro. Lembro que ele estava no estádio quando o Flamengo foi campeão brasileiro em 2009, e eu estava em casa comemorando igual um louco. Aqui, isso sempre passou de família para família. Acho que eu nunca fui ao estádio sem meu pai, acho que duas vezes só, mais recentemente. Sempre que a gente vai, sempre estamos em família, meu pai é o meu maior companheiro nessas horas”, comentou.

Kalil, que é membro da torcida organizada Raça Rubro Negra, não deixa de acompanhar o Mengão independentemente da distância. “Acho que a maior loucura que eu já fiz foi estar presente nas três finais de Libertadores (em 2019, em Lima, no Peru; em 2021, em Montevidéu, no Uruguai; e em 2022, em Guayaquil, no Equador). Em 2019 mesmo, eu fui sem ingresso, sem hotel, sem nada e consegui tudo na hora. Isso foi algo muito fantástico para mim. E hoje eu tenho uma tatuagem do Flamengo, não existe uma demonstração de amor maior que uma tatuagem, está marcado no meu corpo para sempre”.
O flamenguista completa dizendo que só quem realmente gosta, “vive” dentro do estádio, sabe a magia que é e se sentir importante para o clube. “A gente não torce para jogador ou diretoria, torcemos pelo Flamengo, não importa quem esteja lá, vamos sempre apoiar essa camisa”, finaliza.
Na opinião de mais um louco do bando, o corinthiano Eneias Ribeiro, líder da Estopim, torcida organizada do timão, da região de Mogi Guaçu e cidades vizinhas, “não tem como explicar o que é ser Corinthians, pois você vive esse sentimento intensamente. É como se fosse uma paixão de família, quando o Corinthians perde parece que perdi um ente familiar. Para quem vive intensamente, esse é o sentimento de verdade. A motivação de um torcedor é querer estar perto do clube. Onde o Corinthians vai, a gente faz o máximo para estar junto, seja onde for”, declara.

Durante a nossa conversa, Eneias nos contava sobre algumas “loucuras” que já fez para acompanhar o seu time de coração. “Já fiz vários tipos de loucura pelo Corinthians. Por exemplo, em 2000, eu vendi uma bicicleta que eu tinha ganhado da minha vó, até pedi para ela antes. Eu ainda era moleque, tinha 17 anos. Queria ir para o Mundial, no Rio de Janeiro e consegui. Também fui para a La Bombonera, na Argentina, na Libertadores de 2012 e para o Mundial de 2012, no Japão”, relata.
Ao ser perguntado sobre a sensação de acompanhar de perto um título mundial do alvinegro paulista no outro lado do mundo, Eneias nos enviou um link de imagens que fez in loco, no dia da final, contra o Chelsea, e nos pediu para assistir e tentar entender o seu sentimento.
Eu poderia tentar explicar em palavras, mas acho que o vídeo é a melhor opção para vocês entenderem esse clima:
“Durante toda a minha infância, cresci assistindo aos jogos do Independiente pela TV, indo ao estádio e também ouvindo pelo rádio. É uma herança que meu pai me deixou. Sinto que tudo o que faço pelo Independiente é um presente para o meu pai, que está no céu”, essa foi uma declaração dada por um torcedor apaixonado pelo “Rei de Copas”, apelido do Club Atlético Independiente, Alejandro Bonutto. E se esse texto fala de paixão, não poderíamos deixar de trazer esse lado hermano de amar esse esporte.
Embora tenha vivido seus anos de glória nas décadas de 60, 70 e 80, o maior campeão da história da Libertadores com sete títulos, passa por um momento de instabilidade financeira, com a diretoria do clube tendo que recorrer a um streamer para salvar o time de uma possível falência. A dívida do clube passa da casa dos R$100 milhões de reais.
Foi então que Santiago Maratea, influencer argentino e torcedor do Independiente, que soma 3,6 milhões de seguidores no Instagram, decidiu criar uma campanha nas suas redes sociais para arrecadar fundos para ajudar o clube de Avellaneda a sair dessa situação. Desde a última atualização que temos, a “vaquinha” soma cerca de R$15 milhões, ou 760 milhões de pesos.
Perguntado sobre o assunto, Alejandro diz que o clube e diretoria não entendem o esforço e o amor que alguns torcedores sentem pelo clube. “Dentro de uma equipe, há seres humanos, e não podemos esquecer que para eles é um trabalho como qualquer outro. O que quero dizer é que o torcedor vive isso de uma maneira diferente (essa loucura que ele tem pelo Independiente não tem limites), enquanto em uma equipe, há jogadores que colocam mais esforço do que outros. Vestir esta camisa deveria ser uma motivação tremenda, e se alguém não estiver em condições, deveria dar um passo atrás, mas, infelizmente, o senso de pertencimento quase não existe mais”.

Alejandro mora na cidade de Rosário, que fica a 300 km da capital Buenos Aires e a mais de 350 km de Avellaneda, e apesar da distância, ele não deixa de acompanhar seu time. “Toda vez que o Independiente joga, minha vida para. Onde quer que esteja, tenho que assistir ou ouvir a partida. Me transformo. São duas horas durante o jogo em que estou dentro de campo. Tenho muitas superstições. Muitas vezes ouvi jogos no rádio enquanto estava no meu carro e, se o Independiente estivesse ganhando, não saía até o jogo terminar. Tento ir ao estádio sempre que o time joga em casa e dou o meu máximo para que tudo corra bem! É um amor para a vida toda”, comenta.
Nova geração de torcedores
Ao ser questionado sobre o comportamento resultadista de alguns adeptos, o professor Celso Unzelte relacionou esse sentimento com o momento atual em que vivemos, no qual são tempos de muita disputa, concorrência no trabalho e na vida. “Eu não imagino que hoje em dia clubes como o Corinthians, que ficou 22 anos sem ser campeão, por exemplo, conseguiria ter a sua torcida aumentada. Os interesses mudaram. É disputa para ter título mundial, título internacional, ter mais títulos que o rival, isso está muito mais acirrado hoje em dia do que em outros tempos. A geração de hoje dá muito mais importância a essa coisa de vencer sempre, do que tinham outras gerações de torcedores”, completa Unzelte.
Florenzano, concorda com a opinião de Unzelte, ao dizer que as práticas torcedoras são transformadas ao longo do tempo e de acordo com as novas configurações sociais que se constituem no campo esportivo.
“Hoje, à luz do processo de elitização do futebol, ocorre uma mudança no perfil socioeconômico do público, e, por consequência, nas práticas do torcer e na própria lógica do torcer. Nesse novo cenário, os resultados, que sempre foram importantes, sem dúvida, adquirem um valor central para conferir sentido à experiência nas arquibancadas. O imperativo de vitória, contudo, não pode ser correlacionado apenas a este aspecto mais elitista do público, outros fatores também atuam para conferir centralidade à busca de resultados, como, de modo mais amplo, a sociedade do desempenho na qual a competição se desenrola”, explica o professor.
Esse fato da elitização se mostra presente em um exemplo muito atual, a final da Copa do Brasil de 2023, entre Flamengo e São Paulo. No jogo de ida, realizado no Maracanã, no dia 17 de setembro, a média do preço do ingresso chegou a R$279, com tickets vendidos entre R$400 e R$4.500. A média fica um pouco abaixo do valor do ingresso mais barato, por conta dos descontos do programa de sócio torcedor do clube carioca, cadeiras cativas, gratuidades e tribuna. Mesmo assim, a torcida do rubro negro carioca lotou o estádio com 60.390 pagantes (67.350 contando o público total), e teve uma renda bruta de R$ 16.861.141, segundo informações publicadas pelo jornalista especializado em negócios do esporte, Rodrigo Capelo, na sua página do X.
Mesmo com todo esse fator de elitização e clara “inflação” nos valores dos ingressos, os torcedores, aparentemente, têm entendido cada vez mais o seu verdadeiro papel. Na atual edição do Campeonato Brasileiro em 2023, em 179 partidas disputadas com torcida presente, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) registrou a maior média de público da história da competição, com 4,8 milhões de torcedores nos estádios, o que corresponde a uma média de 26.991 pagantes por jogo. Essa marca supera a do ano de 1983, que contou com 22.953 torcedores por partida.
Na Argentina, o River Plate, campeão por quatro vezes da Libertadores, a partir de fevereiro de 2023, começou a contar com uma grande novidade. A sua casa, o estádio Monumental de Núñez, após passar por uma reforma, dispõe de uma capacidade de cerca de 83,2 mil lugares disponíveis, se tornando o maior estádio da América do Sul. Quem enfrentou essa torcida de pertinho foi a equipe do Internacional, que foi derrotado na oportunidade pelo placar de 2 x 1, com 80 mil torcedores presentes, mas conseguiu a “remontada” nos pênaltis, no jogo de volta no Beira-Rio.
Um fator que tem impulsionado esta ótima presença de público nos estádios brasileiros e argentinos, é o sucesso na Copa Libertadores. De acordo com uma pesquisa realizada pela agência de jornalismo da PUC-SP, nunca brasileiros e argentinos foram tão predominantes na “Champions League da América do Sul”. De 2017 a 2022, as oitavas de final da Copa contaram com 96 participantes. Desse número, 65 deles foram argentinos ou brasileiros, o que representa 68% do total. Entre 1989 (quando as oitavas de final foi inserida no mata-mata) e 2016, o número era de 39%. E agora um fato da fonte, que sou eu mesmo, que desde 2017, só temos brasileiros e argentinos na final da Liberta.
Um campeonato à parte
Não poderíamos pensar em encerrar esse texto que você está acompanhando até aqui, antes de falarmos sobre aquele embate aguardado durante toda uma semana, seja com ansiedade ou apreensão: os clássicos. Uma partida que pode ser interpretada como uma virada de chave, um passo para uma reviravolta na temporada de um clube, seja ela negativa ou positiva. Alguns diriam que se trata de um jogo que vale mais que a conquista de um título, e até a consolidação dentro do seu “território”.
A origem de como essas partidas surgem são inúmeras. E dentro do ambiente do futebol, é normal você escutar que torcedores não usam roupas nem acessórios nas cores do time rival, ou até mesmo nem citam o nome do seu maior adversário. Pode parecer besteira para quem não é fã desse esporte disputado dentro das quatro linhas, porém, obedecer a essas regras é praticamente uma religião.
Para um fanático, como é o caso do corinthiano Eneias, ele foi enfático ao dizer que o dérbi é sim um jogo a parte do campeonato, e que a preparação para acompanhar este jogo, seja no estádio ou em casa, se torna diferente. “Em um embate contra o Palmeiras, se caso aconteça a derrota, você passa a semana decepcionado com o resultado, a semana acaba. É o principal jogo, você não vai ganhar sempre, mas na semana do dérbi os preparativos, o ambiente e a atmosfera são especiais”, reconhece.
Para o flamenguista Kalil, o clássico é mais importante que uma final de Libertadores. “É um clima totalmente diferente. É um clima hostil. Você vai para uma guerra mesmo. Eu já fui em vários, principalmente na final do Carioca”, conta.
Já Alejandro, torcedor do Independiente, tratou de ressaltar outros embates argentinos, além da histórica rivalidade de Avellaneda contra o Racing Club. “Um clássico salva metade do ano, mas nem todos pensamos da mesma forma (brinca). Temos vantagem de alguns jogos sobre os nossos vizinhos, e às vezes até desfrutamos mais quando vencemos o Boca ou o River. No entanto, queremos que essa vantagem continue crescendo ano após ano, pessoalmente, sofro mais quando jogamos contra o Boca do que contra o Racing”, finaliza.
“Rival é aquele que está bem próximo de você e que você quer superar. E todo lugar tem seus rivais, tem seus dérbis. Podemos citar alguns como Corinthians e Palmeiras, Grêmio e Internacional, e muitos outros exemplos de dérbis. E uma vitória nesta partida tudo se redime. Esses jogos têm valor duplo, tem o valor da vitória do seu time e da derrota do time adversário”, pontua o professor Celso Unzelte.
“Um clássico no futebol representa uma rivalidade intensa e profunda entre dois times. Uma vitória em um clássico significa muito para os torcedores, pois vai além dos pontos em jogo. É um orgulho regional, uma forma de se vangloriar sobre o rival e fortalece a identidade do clube. Pode ter um impacto significativo na moral dos torcedores e na narrativa da temporada. Um clássico pode ter um significado profundo para os torcedores por várias razões: rivalidade histórica, supremacia local, direitos de se gabar, identidade e orgulho, e momento de redenção”, avalia o argentino e jornalista esportivo do veículo Cadena 3, Claudio Giglioni.
Se você que está acompanhando o texto até aqui é um amante do futebol, tenho certeza de que, mesmo que em algum pequeno detalhe, você se identificou com algumas das declarações e depoimentos aqui depositados. Ou até, se está aqui e não é um fã desse esporte, talvez com essa declaração bem-humorada do Unzelte, as coisas se tornem mais claras: “Eu costumo dizer que três coisas sempre me deixaram triste na vida: morte de parente, briga com a namorada e derrota para o Palmeiras. Partidas assim realmente marcam a vida de uma criança que gosta de futebol para sempre”.